Recordo-me do grande filósofo brasileiro Henrique de Lima Vaz que freqüentemente dizia que quando perdemos o sentido caminhamos para o nada, diagnosticava acertadamente que sofríamos de “febre de ética”. Em seus Escritos de Filosofia IV na Introdução à Ética Filosófica I 2, ele se perguntava: “será que a cultura humana vai se metamorfosear na cultura do niilismo? Seremos uma civilização do niilismo? A febre de ética é sinal de uma doença maior, o niilismo, a perda dos valores humanos e espirituais”.
Sim, a constatação de Lima Vaz poderia ser feita na atualidade: estamos doentes! Para ganhar crédito, o que muitos fazem é justamente falar de ética. Dá status, IBOPE, está na moda. Garante uns votos, olhares confiantes e esperançosos. Merece credibilidade o indivíduo que vive um personagem que parece ser o oposto de seu verdadeiro eu? Certamente nunca ouviram falar do famoso mote filosófico: o agir segue o ser. Romano cita Kant “o ato imoral, diz Kant, surge da alma hipócrita, exímia em bajulação. Nele, os sujeitos "rebaixam seu próprio valor moral com o simples intento de dar a si mesmos os meios para obter o favor de um outro qualquer" (Metafísica dos costumes).
E o que é Moral ? Romano outra vez nos ilumina quando recorre à tradução do verbete “moral” apresentado na Enciclopédia de Diderot e D´Alembert: “MORAL, s.f. (ciência dos costumes)é a ciência que nos prescreve uma conduta sábia e os meios de a ela conformar os nossos atos. A ciência dos costumes pode ser adquirida até um certo grau de evidência, por todos os que desejam usar a sua razão, em todo estado em que encontrem. A mais comum experiência da vida e um pouco de reflexão sobre nós mesmos e sobre os objetos que nos envolvem por todos os lados bastam para fornecer às pessoas mais simples as idéias gerais de certos deveres, sem os quais a sociedade não poderia ser mantida. Com efeito, as pessoas menos esclarecidas mostram, por seus discursos e sua conduta, que têm idéias muito corretas em matéria de moral, embora nem sempre possam desenvolvê-las muito bem, nem exprimir com clareza tudo o que sentem; mas aos que possuem maior penetração devem ser capazes de adquirir, de modo distinto, todas as luzes das quais necessitam para se conduzir”.
Que não se confunda aqui conduta sábia com uma lengalenga moralista e pedante que deseja fazer dos outros gravetos para serem queimados na “fogueira santa” da consciência moral coletiva. O desafio apresentado por Romano não é apenas falar de moral, mas viver moralmente com equilíbrio. Falar e agir. Agora, como ser ético, e moralmente correto, quando as circunstâncias me pedem o contrário? Aí mora a liberdade. É comum perceber que geralmente o que rejeitamos é o que não conseguimos viver. Eric Voegelin pontuou: “O pensador ideológico cria uma linguagem para expressar não a realidade,mas a sua alienação dela.”3
E novamente o comentário elucidativo de Romano: “as dificuldades que às vezes nos embaraçam, em matéria de moral, não vêm tanto da obscuridade que encontramos nos preceitos, mas de certas circunstâncias particulares, as quais tornam difícil a sua aplicação; mas essas circunstâncias particulares não provam a incerteza do preceito, do mesmo modo que a dificuldade sentida para aplicar uma demonstração matemática não diminui a sua infalibilidade”.
Um homem que vive a hipocrisia política pode querer parecer imaculado na frente das pessoas, ou pode ter uma reação inesperada: negar a importância dos valores, já que não consegue vivê-los. Eis a nossa cultura: caminha nessa crise de sentido para o nada. Niilismo puro.
A filosofia é um exercício de virtude, disse Sêneca. Romano nos convida a perceber que olhando a história da filosofia podemos conhecer vários pensadores que se preocuparam com o tema da moral: Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, Zenão, Plotino, Plutarco, Sêneca, Cícero, Boécio, Kant, e muitos outros.
Roberto Romano conclui seu texto com uma importante observação: “finalmente, seria conhecer muito mal a religião, sublinhar o mérito da fé às expensas da moral; pois embora a fé seja necessária para todos os cristãos, podemos avançar, com verdade, que a moral supera a fé em diversos pontos.
1) Porque estamos em condições de fazer o bem, e nos tornarmos mais úteis ao mundo pela moral sem a fé, do que pela fé sem a moral.
2) Porque a moral possibilita maior perfeição à natureza humana, pois tranqüiliza o espírito, acalma as paixões, adianta a felicidade de cada um em particular.
3) Porque a regra para a moral é ainda mais certa do que a da fé, visto que as nações civilizadas do mundo concorram sobre os pontos essenciais da moral, enquanto diferem na mesma intensidade nos da fé.
4) Porque a incredulidade não tem natureza tão maligna quanto o vício; ou, para considerar a mesma coisa de outro ângulo de vista, porque é conveniente em geral que um incrédulo virtuoso possa ser salvo, sobretudo no caso de ignorância invencível, enquanto não há salvação para um crente vicioso.
5. Porque a fé parece extrair a sua virtude principal, senão a sua única virtude, da influência que ela exerce sobre a moral”.
Moral então não é questão de crença. É possível ter um código de ética, e uma moral determinada pelo grupo que eu vivo, mas é desonestidade intelectual querer que todas as opiniões tenham o mesmo peso, e rejeitar a possibilidade de encontrar verdades, inclusive no campo da moral. Existem muitas opiniões? Sim, existe diversidade cultural e divergência de opiniões, mas isso não quer dizer que a verdade seja anulada por multiplicidade de pontos de vista. Bem disse Harry Gensler em seu artigo intitulado Ética e relativismo cultural:
"Visto as diferentes culturas discordarem amplamente sobre a moral, não podem existir verdades morais objetivas." O simples fato de existir desacordo não mostra, no entanto, que não existe verdade neste domínio e que nenhum dos lados está certo ou errado. O extenso desacordo entre diferentes culturas acerca de antropologia, religião, e até em física, não impede a existência de verdades objetivas nestes domínios. Logo, o desacordo em questões morais não mostra que não exista verdade nestes assuntos”4.
Querer “igualdade” para todas as idéias, e regras morais é o mesmo que militar pedindo igualdade para todas as formas de pensar e agir, por mais insanas que sejam. Assim, na utópica e alienada sociedade democrática, teríamos idéias de grandes pensadores como Platão, Sócrates, Agostinho, Tomás de Aquino, no mesmo patamar que um devaneio que possamos ter na sala de aula. Ou pior, pessoas que têm os piores hábitos e causam danos a si mesmos e aos demais, teriam não só o direito de fazer o que bem entendessem, gozando da “mais pura liberdade” mas processariam os que lhe fossem indiferentes seguindo o conselho de Lênin: “Acuse-os daquilo que você faz, xingue-os daquilo que você é.”5 Isso sim, seria um ABUSO!
1 ROMANO, Roberto. Contra o abuso da ética e da moral. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302001000300006> Acesso em 05-06-07
2 JOÃO PAULO. Lições da História. Disponível em <http://www.padrevaz.hpg.ig.com.br/escritosIV.htm> Acesso em 05-06-07
3 CARVALHO, Olavo de. Lindeza moral incomum. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/semana/060209jb.htm Acesso em 05-06-07
4 GENSLER, Harry. Ética e relativismo cultural. Tradução de Paulo Ruas. Extraído de Ethics: A contemporary introduction, de Harry Gensler (Routledge, 1998). Disponível em
5 CARVALHO, Olavo de. Nós e eles, ou: a dupla moral. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/semana/040117globo.htm Acesso em 05-06-07
19 agosto, 2007 07:44
Lendo esse texto me lembrei das aulas de filosofia do segundo grau...
Desde cedo aprendemos sobre ética e moral, mas parece que nunka aprendemos a usar... pelo menos alguns....
DYNA KELLY
20 agosto, 2007 11:14
É duro ler o seu texto. Principalmente o final, quando me dou conta que os verbos lá, talvez, estejam conjugados inadequadamente. Isto é, eles "estão perfeitamente" no nosso mais recente passado (a exemplo do caso do assassino da atriz Daniela Perez - hoje, se alguem se atrever a chamá-lo de assassino, pode ser submetido a um legítimo processo, se assim ele quiser.), e se aplicam no nosso presente- de grego- infelizmente.
É ruim constatar que quando as palavras ETICA e MORAL são mencionadas, muitas pessoas tendem conduzir seus olhares, pensamentos e críticas para o cenário político. Ora, uma alienação a meu ver. Pois, como você cita em seu texto a respeito do "niilismo", isso nos toca a todos, e de certa forma, mui individualmente.
Gosto muito do texto da Elisa Lucinda SÓ DE SACANAGEM
"Quantas vezes minha esperança será posta à prova?
...
"Com o tempo a gente consegue ser LIVRE, ÉTICO e o escambau. Dirão: “É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal”. E eu direi: “Não admito, minha esperança é imortal”. E eu repito: “Ouviram? IMORTAL!” "
Texto na integra no Jornal de Poesia
http://www.revista.agulha.nom.br/elisalucinda3.html
Abraços Fraternos,
Dionea Menezes Oliveira
29 outubro, 2007 16:45
Diego,
Muito bom o texto. Por isso que te mandei o texto do Constantino. Julgo que ele levanta questões importantes no debate sobre ética.
Bueno, vc disse:
"Logo, o desacordo em questões morais não mostra que não exista verdade nestes assuntos."
Ok. Eu aprendi ética (no sentido de formação da contuda moral) mais em decorrencia das minhas conclusões a medida que eu ia conhecendo a doutrina da Igreja, ou seja, a medida que assistia os diversos programas, palestras e lia os livros da Canção Nova: não pecar, não matar, nao cobiçar, respeitar pai e mãe etc. etc. etc. Era desse sistema que eu extraía a única moral verdadeiramente válida, e considerava que todas as outras morais que se presazem, deveriam derivar da ética cristã, aquela nos legada no evangelho GRAÇAS A REVELAÇÃO. Ora, nos ultimos tempos, a medida que começei a estudar mais de perto o tema, tenho percebido que não necessariamente a ética precisa ser extraída do cristianismo ou da revelação em si, mas que uma ética pode ser inferida desde a razão pura e simples. Ou seja, uma ética universal, é possivel até mesmo para um ateu ou, melhor dizendo, para alguem que nunca viu a bíblia e nem sabe quem foi Jesus Cristo.
Foi quando eu li "Ética a Nicomaco" que percebi que sim! não precisamos necessariamente de religião para formar uma moral verdadeira, sem relativismos. Ao meu ver, foi isso que Aristoles fez no livro. E no livro "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", parece que Kant tenta expor uma moral racional, no estilo defendida pelo Constantino, o Rodrigo, sem requerer quaquer revelação, ou qualquer cristianismo.
A questão é: Precisamos do cristianismo ou de qualquer outra grande religião, para estabelecer uma moral universalmente válida? Ou, só a religão pode oferece uma moral válida?
Pelas minhas leitura iniciais, me parece que não. A moral não precisa da religão para se estabelecer como universal.
Porém, atualmente não tenho isso muito claro, pois tenho a impressão (estou correndo o risco de falar besteira, mas tenho a imporessão) que o Olavo em algum lugar disse que não existe moral desconectada do legado das grandes religioes. Que toda noção moral que temos, quer queiramos ou não, deriva da religião. Se não me engano o Constantino tentou provar que não, que é possível uma moral universal sem religião, mas não tenho certeza.
Enfim, queria saber o que vc teria a me dizer sobre isso, especialmente para as minhas questões sobre moral e religão.
Obrigado e um abraço!
Lucas